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Relembre
Inferno no circo: o dia em que o Brasil assistiu ao pior incêndio de sua história com 503 pessoas mortas
Tragédia em Niterói (RJ) provocou a morte de 503 pessoas, sendo 352 crianças. Sobrevivente que teve 90% do corpo queimado relembra o episódio.

Publicado em 06/04/2023 13:23

Em número de mortos, o incêndio do Gran Circo é o maior já registrado no Brasil Foto: Arquivo Nacional / BBC News Brasil


Direto do Portal Terra - Quando pediu à mãe para ir à matinê de domingo do Gran Circo Norte-Americano, que tinha acabado de chegar a Niterói, município vizinho ao Rio de Janeiro, Maria José Martins de Oliveira, a Zezé, ouviu um sonoro "não" como resposta.

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Dias antes, Arlete Martins de Oliveira tivera um pesadelo medonho: sonhou que a filha de 11 anos tinha sofrido um acidente de ônibus e, presa nas ferragens, suplicava por socorro. Alheia aos "maus pressentimentos" da mãe, Maria José pediu ajuda ao pai, Geraldino Leite de Oliveira, que intercedeu em favor da filha.

Conclusão: a menina foi ao circo acompanhada por uma afilhada de batismo da mãe, nove anos mais velha.

O Gran Circo chegou a Niterói no dia 8 de dezembro de 1961 e foi montado na Praça do Expedicionário, em frente à Estação Leopoldina. O mastro principal media 17 metros de altura e a lona, feita de algodão e revestida de parafina, pesava seis toneladas.

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Para ajudar na montagem, o dono do circo, o gaúcho Danilo Stevanovich, contratou 50 operários. Depois de armado, o Gran Circo ocupou um diâmetro de 50 metros em um terreno baldio que, aos sábados e domingos, servia de campo de futebol improvisado para a garotada da vizinhança. O circo estreou em Niterói na noite de 15 de dezembro, uma sexta-feira, com lotação esgotada.

Aluna do Colégio Maria Tereza, em São Domingos, Maria José voltava para casa em Tribobó, São Gonçalo, quando, na avenida Feliciano Sodré, viu, pela janela do ônibus, o desfile de alguns dos 40 artistas do circo, entre palhaços, trapezistas e domadores, e dos seus 150 animais, como leões, girafas e elefantes, pelas ruas de Niterói. "Fiquei doida!", resume a hoje professora aposentada, com 73 anos.

Ela e a afilhada de sua mãe conseguiram comprar os últimos ingressos para a matinê de sábado, que começava às duas e meia da tarde. O circo tinha capacidade para 3,4 mil espectadores, divididos por nove arquibancadas, 800 cadeiras e 25 camarotes.

O Gran Circo era formado por 40 artistas, como palhaços, trapezistas e domadores, e 150 animais, como leões, girafas e elefantes

Cada uma das 10 sessões do Gran Circo em Niterói começava com um número de domadores de leões e terminava com outro de trapézio.

Foi um dos integrantes dos Flying Santiago, aliás, a primeira pessoa a gritar "Fogo!" naquela tarde calorenta de 17 de dezembro.

A trapezista Nena, nome artístico de Antonietta Stevanovich, irmã de Danilo, tinha acabado de fazer seu número quando avistou, por volta das quatro e vinte da tarde, as primeiras labaredas, a cerca de 20 metros da entrada principal. O fogo começou na parte de baixo da lona. Ela e os outros dois trapezistas, Santiago Grotto e Vicente Sanches, conseguiram escapar ilesos pela porta dos fundos.

Maria José não teve a mesma sorte. Na confusão, a menina se perdeu da afilhada de sua mãe. Sozinha, foi empurrada pela multidão e pisoteada. Conseguiu se levantar com dificuldade. Mas, quando se preparava para sair correndo, alguém pisou na sandália de borracha que ganhou de presente da mãe e levou outro estabaco.

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"Caí por cima de várias pessoas. E várias pessoas caíram por cima de mim. Caí e ali fiquei, sem conseguir me levantar. Tudo o que eu conseguia fazer era pedir a Deus para me tirar dali. Até hoje, não sei como consegui", recorda Maria José que, sob o nome artístico de Zezé Pedroza, contou sua história no romance Vidas em Chamas (Editora Viseu, 2016), dedicado à sua mãe e ao cirurgião plástico que a operou, Jacy Conti de Alvarenga.

Enquanto os trapezistas corriam para a porta dos fundos, Semba, uma das cinco elefantas indianas da trupe, abria um gigantesco rasgo na lona. Minutos antes, ela e suas irmãs - Jane, Lisa, Yoga e Mary - divertiram o público, jogando bola, dançando valsa e levantando as patas.

No entanto, ao ouvir o grito de fogo, o paquiderme de quatro toneladas fugiu em debandada e deixou um rastro de admiração e cólera.

"Herói para uns, porque abriu espaço por onde muitos passaram, vilão para outros, porque provocou mortes em seu caminho", descreve o jornalista Mauro Ventura em O Espetáculo Mais Triste da Terra — O Incêndio do Gran Circo Norte-Americano (Companhia das Letras, 2011).

Na fuga, centenas de sapatos, sandálias e chinelos foram deixados para trás
Na fuga, centenas de sapatos, sandálias e chinelos foram deixados para trás
Foto: Arquivo Nacional / BBC News Brasil

'Corredor da morte'

Na hora do "salve-se quem puder", poucos conseguiram fugir pela porta dos fundos — apesar de larga, era escondida por uma cortina —, outros tantos pegaram carona na fuga alucinada de Semba.

A maioria tentou sair por onde entrou. Para chegar sãos e salvos do lado de fora, tinham que atravessar um túnel de treze metros de comprimento por quase quatro de largura. No caminho, dois gradis de ferro usados para facilitar a entrada do público dificultavam sua fuga. Perto do fim da sessão, seriam retirados. Mas, com o incêndio, ninguém se lembrou disso. Conclusão: o tal túnel ganhou o macabro apelido de "corredor da morte".

Ao longo de dois anos, Ventura entrevistou dezenas de pessoas, entre sobreviventes, familiares, médicos, voluntários e escoteiros.

Das muitas dificuldades que enfrentou, destaca três: ninguém queria dar entrevista ("O trauma foi tão grande que as pessoas preferiam evitar o tema"), as memórias vinham embaralhadas ("Eram muitas as contradições. Muita gente confundia a data e o local da tragédia") e documentos importantes se perderam ("A começar pelo processo judicial, que simplesmente desapareceu").

"Caso estivesse fazendo o livro hoje, a principal dificuldade seria a ausência de fontes. Os principais entrevistados morreram de 2009 para cá", lamenta.

A maioria do público tentou fugir pelo que ficou conhecido como 'corredor da morte'

A maioria do público tentou fugir pelo que ficou conhecido como 'corredor da morte'
Foto: Arquivo Nacional / BBC News Brasil
 

O incêndio do Gran Circo durou apenas 10 minutos. Mas deixou, segundo estimativas oficiais, 503 mortos — sete em cada dez eram crianças.

"Jamais tantos brasileiros morreram em tão pouco tempo e no mesmo lugar", afirma Ventura.

O incêndio da Boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013, registrou 242 vítimas fatais e do edifício Joelma, em 1º de fevereiro de 1974, 188.

O incêndio no Gran Circo gerou uma comoção internacional.

O papa João 23 (1881-1963) mandou rezar uma missa em homenagem às vítimas. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) doou a quantia de 1 milhão de cruzeiros. E o Santos de Pelé (1940-2022) e o Botafogo de Garrincha (1933-1983) fizeram uma partida beneficente em pleno Maracanã.

 


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